Saint-Émilion e a Classificação de seus Vinhos

Sábado, 17 de julho de 2021

No mundo dos vinhos Bordeaux Château Cheval Blanc é sinônimo de prestígio e qualidade originando-se nessa região alguns dos vinhos mais míticos do planeta. É a maior apelação de origem francesa em volume e em valor.


Dentro da grande AOP (Appellation d'Origine Protégée) Bordeaux existem diversas AOPs menores e dentro delas outras ainda menores, como se fossem caixas menores dentro de caixas maiores, todas com regramento próprio e ressaltando os respectivos terroirs. 


A vasta região de Bordeaux divide-se em três grandes sub-regiões (com suas diversas apelações de origem protegida):

Saint-Émilion

Saint-Émilion

Château Angelus

Saint-Émilion

I) “margem esquerda” (terras ao oeste do rio Garonne e do estuário do rio Gironde – da península do Médoc até Graves, em regra com solos “quentes” de cascalho e areia);


II) “margem direita” (terras ao leste dos rios Gironde e Dordogne, se estendendo de Blaye até Castillon, em regra com solos “frios” de argila e calcário);


III) Entre-Deux-Mers (“ilhas” de vinhedos entre os rios Gironde e Dordogne, possuindo todos os tipos de solos de Bordeaux).


A par das diversas AOPs (Appellation d'Origine Protégée) existentes em Bordeaux há algumas classificações criadas ao longo dos anos por razões diversas para destacar vinhos segundo alguns critérios específicos de cada classificação. 

A primeira e a mais célebre é a de 1855 para os vinhos do Médoc e de Sauternes (duas classificações em uma), que refletia os preços dos vinhos na época e criada para a Exposição Universal de Paris realizada naquele ano. Trata-se de uma classificação praticamente imutável (a exceção ocorreu em 1973 com a promoção do Château Mouton Rothschild) e que em alguns casos não mais retrata uma hierarquia de preços entre seus vinhos.


Depois surgiram as classificações Cru Bourgeois (início no ano de 1932, com revisões posteriores), Cru Artisans (início no ano de 2006 com revisões posteriores), a dos vinhos de Graves (1953 com revisão em 1959) e a mais controvertida de todas a de Saint-Émilion (a única da sub-região da “margem direita”).

Em Saint-Émilion há duas AOPs que cobrem a mesma área de produção: Saint-Émilion e Saint-Émilion Grand Cru. A Grand Cru possui padrões mais exigentes (e.g. menor rendimento das vinhas, álcool mínimo do vinho

mais elevado etc...) e todos os vinhos devem ser engarrafados no Château e submetidos a duas provas (antes e após o período obrigatório de um ano de amadurecimento). Essas AOPs não devem ser confundidas com a classificação dos vinhos de Saint-Émilion criada em 1955.


O sistema de classificação dos vinhos de Saint-Émilion inicialmente foi pensado para ser revisto a cada 10 anos (ou até mais) e foi estabelecido em 1955. Para obter um status de Grand Cru Classé dentro da referida classificação o vinho deve necessariamente ser da AOP Saint-Emilion Grand Cru. 


Os vinhos nessa classificação dividem-se em Premiers Grand Cru Classé Nível A; Premiers Grand Cru Classé Nível B; e Grand Cru Classé.


A classificação dos vinhos de Saint-Émilion foi atualizada nos anos de 1969, 1986, 1996, 2006 e 2012, e está prevista para ser atualizada em 2022.


A atualização da classificação dos vinhos de Saint-Émilion de 2006 acabou por desencadear uma verdadeira batalha legal, que se estendeu em instâncias administrativas, judiciais e até mesmo legislativas. A discussão se centrou na alegação de parcialidade de diversos membros do painel formados para analisar os vinhos e decidir quais seriam promovidos, quais não seriam e quais seriam rebaixados. Alguns, por exemplo, eram négociants que mantinham relações comerciais com algumas das vinícolas. Após diversas reviravoltas administrativas, judiciais e legislativas, em 2009 a Cour de Cassation, o mais alto órgão do Judiciário francês, decidiu anular a classificação de 2006 e restabelecer a de 1996. Logo em seguida, em maio de 2009, o Legislativo francês aprovou uma lei que estabelecia que os seis Chtâteaux que haviam sido promovidos a Grand Cru Classé em 2006 assim permaneceriam somando-se aos demais da revitalizada versão de 1996 da classificação com validade até 2011.


Em 2012 a classificação foi novamente revista, buscando apagar os efeitos deletérios e a confusão decorrentes da última versão de 2006. Dessa vez, o INAO formou uma comissão de sete pessoas para conduzir as

degustações e as inspeções nas vinícolas, e sem envolvimento com o sindicato de vinhos de Saint-Émilion e/ou com o comércio de vinhos de Bordeaux, Os membros eram profissionais do vinho ligados a outras regiões, como Borgonha, Rhône, Champagne, Loire e a Provence. Nessa versão, não havia mais um número máximo de Châteaux na classificação. Os Château Pavie e Château Angélus foram promovidos para a Premiers Grand Cru Classé Nível A (passando a fazer companhia ao Château Cheval Blanc e ao Château Ausone) e vários outros, inclusive alguns garagistes como Château Valandraud, entraram nas categorias Premiers Grand Cru Classé Nível B (e.g. Château Canon-la-Gaffelière, La Mondotte, Château Larcis Ducasse) e Grand Cru Classé. 

Em janeiro de 2013, Château La Tour du Pin Figeac (Giraud-Bélivier), Chateau Croque-Michotte e Château Corbin-Michotte iniciaram processos no Tribunal Administrativo de Bordeaux alegando erros nos procedimentos para a revisão da classificação, não havendo maiores desdobramentos até o momento dessas iniciativas.


Nesse mês de julho, quando se iniciavam os procedimentos para revisão da classificação dos vinhos de Saint-Émilion, a imprensa especializada (Terres de Vins, Decanter, The Drink Business) noticiaram que o Château Cheval Blanc (leia aqui) e o Château Ausone, ambos do seleto grupo dos Premiers Grand Cru Classé Nível A, decidiram não mais participar do sistema de classificação local, discordando de alguns novos critérios de julgamento, em especial os atinentes a aspectos de marketing (colocação do produto no mercado, com que frequência a vinícola aparece na mídia, incluindo redes sociais) e infraestrutura de enoturismo, entendendo que a importância do terroir foi relegada a um segundo plano. 


Segundo a revista inglesa Decanter, Pierre Lurton, diretor do Château Cheval Blanc, questionou ainda o sistema de avaliação dos vinhos, que teria perdido a “noção de identidade e tipicidade, como se a cultura do vinho, a sua capacidade de envelhecimento ao longo de várias décadas e o conhecimento da denominação fossem desnecessários para a avaliação das propriedades”.


Além do Château Cheval Blanc e do Château Ausone, o Château La Clotte e oChâteau Quinault L’Enclos (da mesma equipe do Ch. Cheval Blanc) também decidiram não apresentar suas candidaturas.


Importante notar que a decisão de tais produtores de não mais participar na classificação de vinhos de Saint-Émilion a partir de 2022 não significa que tenham abandonado a AOP Saint-Émilion Grand Cru, que não deve ser confundida, como dito antes, com a classificação. 


Ao que parece, depois de todos esses anos de confusões e batalhas legais, a classificação dos vinhos de Saint-Émilion parece realmente estar em perigo, ou será que sobreviverá ao baque da saída de dois de seus mais festejados produtores? 


Isso tudo me fez lembrar a conversa de anos atrás, por ocasião de uma visita ao Château Le Tertre Roteboeuf - um pequeno produtor de altíssimo nível de Saint-Émilion, com vinhos cultuados entre enófilos do mundo afora - com Nina Mitjavile, filha do proprietário François Mitjavile e uma das enólogas do Château, quando lhe indaguei sobre a classificação dos vinhos de Saint-Émilion e a razão de não participarem. A resposta foi simples: não reconheciam o sistema de hierarquia da classificação e entendiam que cada vinho representava seu próprio terroir, tendo uma identidade única e particular, não sendo passível de comparação.


O tempo dirá o futuro da classificação dos vinhos de Saint-Émilion...


Santé!

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