Descobrindo a Califórnia - Napa Valley

Segunda-feira, 3 de março de 2014

Atendendo a pedidos de diversos amigos, resolvemos publicar no blog uma série de três posts sobre uma viagem à Califórnia, e originariamente publicados no portal EnoEventos no final de 2011 ((leia os demais aqui e aqui)


Introdução


Em 1976, em Paris, Steven Spurrier, um inglês proprietário de uma loja e de um curso de vinhos na Cidade-Luz (Caves de la Madeleine e Académie du Vin) e hoje um conhecido crítico de vinhos (revista Decanter), promoveu, para celebrar o bicentenário da independência norte-americana, uma degustação de vinhos franceses e californianos. A degustação, às cegas, dividida em dois painéis (um de Chardonnays e outro de vinhos com predominância de Cabernet Sauvignon no corte), acabou por surpreender o mundo quando sagraram-se campeões, em ambos os painéis, vinhos californianos. A partir daí esses vinhos ganharam fama e prestígio.

Hoje a Califórnia, contando com grande variedade de microclimas, produz 90% do vinho norte-americano, desde jug wines (vinhos simples, não raro de baixíssima qualidade, e muitas vezes vendidos a granel) até vinhos de ponta, com grande capacidade de guarda, e que rivalizam com os grandes Bordeaux (inclusive em preço).


A Califórnia possui cerca de 81 AVAs (American Viticultural Areas), algumas maiores e outras menores, inseridas dentro de uma ou mais AVAs maiores (e.g. Los Carneros). As AVAs se diferenciam das AOCs francesas e das DOCGs e DOCs italianas, pois indicam tão-somente parâmetros geográficos, deixando os produtores livres para usarem as uvas e as técnicas que bem entenderem e sem outras regras específicas.


Mesmo assim, nota-se uma tendência de diminuição das áreas das AVAs, inclusive com subdenominações nos moldes das AOCs francesas, privilegiando as diferenças de solos e os diversos microclimas locais.


A preocupação de muitos produtores com o seu terroir é tão grande, que alguns destacam nos rótulos os nomes dos vinhedos e outros chegam mesmo a batizar alguns rótulos com o nome do vinhedo (e.g. os vinhos Fay e S.L.V. da lendária Stag's Leap Wine Cellars). A busca pela identidade e pelo destaque no meio do vastíssimo leque de rótulos de alta qualidade disponíveis na Califórnia leva algumas vinícolas a produzirem vinhos únicos, de edições e quantidades limitadas. Alguns vinhos privilegiam uma pequena parcela de um vinhedo específico da vinícola (e.g. Stag's Leap Wine Cellars 2007 FAY Hillside Estate Cabernet Sauvignon e Stag's Leap Wine Cellars 2007 FAY Block 1 Estate Cabernet Sauvignon, ambos de parcelas específicas de um mesmo vinhedo), e, em geral, são vendidos apenas aos membros dos clubes de vinhos da vinícola ou em leilões (muitas vezes arrematados por varejistas que os revendem ao público).


Quando um vinho é rotulado como sendo de uma AVA, 85% das uvas que o compõem devem ser daquela AVA. Já quando há menção da cepa no rótulo, 75% do vinho deve ser composto com aquela uva, podendo cada Estado editar normas ainda mais restritivas. E, por fim, quando a safra consta do rótulo, 95% do vinho deve ser daquela safra.


A variedade dos vinhos californianos é enorme, com milhares de rótulos, o que acaba tornando a compra de desses vinhos um verdadeiro trabalho de investigação!


Em maio passado (nota: ano de 2011), minha esposa, meu filho de três anos e eu passamos um mês na Califórnia e, entre visitas a amigos e uma passadinha na Disneyland, tudo sempre com a onipresente presença do vinho (sim, há vinho na Disneyland), visitamos três regiões vinícolas californianas (Napa Valley, Sonoma e Paso Robles), conhecendo um total de 30 vinícolas.


Para planejar a viagem, contamos com diversas publicações e extensa pesquisa na internet. Nossa grande preocupação era como tirar o máximo de proveito do nosso tempo, porém sem correrias e atropelos, e ainda conciliando os interesses de um menino de três anos.


Em regra, as vinícolas californianas cobram pelas degustações, existindo diversos tipos delas, conforme a vinícola, bem como tours, harmonizações com comida, refeições completas etc... No entanto, nem todas as vinícolas estão de portas abertas ao público. Algumas demandam reserva prévia. E mesmo as abertas ao público em geral exigem reserva para determinados tours. Assim, planejar é essencial, em caso de interesses específicos.


Diversas vinícolas contam com áreas para piqueniques, algumas possuindo delicatessen próprias. Compra-se ali o seu vinho, uma garrafa, uma taça ou um flight, senta-se e curte-se o visual dos vinhedos. A cultura do piquenique é muito forte na Califórnia (não se considera "farofagem"), e assim tenha sempre no carro queijos, pães e outras guloseimas, além de brinquedos para os pequenos. Para quem viaja com criança, é perfeito!

Optamos por fazer sempre um bom café da manhã, uma refeição ligeira no almoço - não raro um piquenique em uma vinícola - e um jantar cedo no final da tarde. Aliás, uma grande vantagem nos Estados Unidos, para quem está com criança, reside no hábito de jantar cedo dos americanos.


Dividimos a parte enófila de nossa viagem da seguinte forma: 3 dias para Napa Valley, 3 dias para Sonoma (mais especificamente a parte norte - Russian River Valley, Dry Creek Valley e Alexander Valley) e 2 dias para Paso Robles. Muito ficou de fora, porém conseguimos nosso objetivo, conhecer parte representativa das regiões escolhidas, de forma tranquila, sem correrias (odiamos "maratonas turísticas").

Napa Valley


A mais famosa região de vinhos dos Estados Unidos fica a aproximadamente 40 minutos de San Francisco, de onde se pode fazer excursões de um dia, tipo bate-e-volta, com muitas das operadoras turísticas locais que oferecem tours desse tipo.


Por ser a mais famosa, Napa é também a região vinícola com mais turistas e a mais cara. Assim, deve-se reservar hotéis, tours nas vinícolas e restaurantes com a maior antecedência possível e evitar os finais de semana.

Napa produz apenas 4% do vinho californiano, contando com 15 AVAs inseridas na AVA Napa Valley (Stags Leap District, Rhuterford, Oakville, Oak Knoll, Yountville, Saint Helena, Spring Mountain, Mount Veeder, Howell Mountain, Wild Horse Valley, North Coast - as duas últimas se estendendo pelo territórios de outros condados vizinhos - Chiles Valley, Atlas Peak, Diamond Mountain), inclusive Los Carneros, que se estende por Napa e Sonoma, com climas mais frios e propícios à Pinot Noir e à Chardonnay. Existem centenas de vinícolas que não raro também produzem vinhos em outras partes do Estado. Não obstante vinhos das mais variadas cepas, é a Cabernet Sauvignon que reina soberana aqui.


O vale de Napa é basicamente uma grande reta de aproximadamente 56 km, rodeada de montanhas, com a cidade de Napa em uma ponta e Calistoga na ponta norte, tendo por artérias principais a Highway 29 e a Silverado Trail (esta com menos tráfego, visual mais bonito, e que corre praticamente paralela à Highway 29). O deslocamento é o mais fácil das regiões visitadas, com distâncias menores.


A cidade de Napa não detém o charme das demais cidades do vale, como Calistoga, Yountville ou St. Helena, embora recentemente esteja em curso um movimento para a sua revitalização.


Optamos, para facilitar o deslocamento, por ficar em St. Helena, praticamente no meio do vale, com diversas vinícolas e opções de restaurantes nas proximidades.


1º dia

No primeiro dia, nosso plano era nos concentrarmos na área de St. Helena e nos distritos vizinhos ao sul, Rutherford e Oakville.


E assim, antes mesmo de fazermos o check in no hotel, visitamos a Joseph Phelps Vineyards, uma vinícola tradicional e que produz grandes vinhos, como seus famosos e colecionáveis Insignia e Backus. Esta é uma das vinícolas que, para visitar, só com reserva, o que já havíamos feito do Brasil.


Além das degustações, a Joseph Phelps Vineyards possui um incrível programa de wine education, com seminários diversos acompanhados de degustações.


Havia reservado um dos seminários, o Single Vineyards Cabernets, que dura uma hora e meia, com um grupo de no máximo oito pessoas e no qual são apresentados os diversos terroirs de Napa Valley, com seus estilos e características distintos, focando-se na Cabernet Sauvignon.


O seminário inicia com duas provas comparativas de dois brancos (um Chardonnay de Sonoma Coast e um Sauvignon Blanc de Napa) e dois tintos (um Pinot Noir de Sonoma Coast e um Merlot de Napa).


Depois uma bateria com Cabernets Sauvignons de terroirs distintos, todos de diferentes sub-AVAs de Napa (St. Helena, Rutherford, Stags Leap District, Oak Knoll e South Napa; esta última, na verdade, é candidata a ser uma nova AVA). Por fim, os dois flagship wines da vinícola, o Backus e o Insignia.


Após o seminário, fomos convidados a escolher dois vinhos e bebê-los livremente no terraço olhando os vinhedos, o que fiz acompanhado de minha esposa e filho. E lógico que escolhi o Backus e o Insignia.


O tratamento da Joseph Phelps Vineyards é de um profissionalismo incrível. Havia avisado com antecedência que, durante o seminário, minha esposa e meu filho me esperariam. Simplesmente havia um local muito agradável reservado para eles com sucos e água à vontade.


Uma experiência inesquecível não só pela qualidade dos vinhos, mas sobretudo pelo nível de profundidade do seminário e o primoroso atendimento que recebemos.


Depois, fizemos duas degustações em duas vinícolas clássicas e famosas de Napa Valley: a Heitz Wine Cellars, que participou do "Julgamento de Paris" em 1976 com o vinho Heitz Cellar Martha's Vineyard 1970, e a Louis M. Martini Winery. Ambas produzem vinhos fantásticos, com destaque para os seus Cabernets Sauvignons.

2º dia

No segundo dia, rumamos para o norte do vale, rumo à Calistoga.


No caminho, nossa primeira parada foi na Sterling Vineyards. A proposta é bem diferente. Um tour por conta própria pela vinícola, seguindo um caminho pré-determinado, acompanhado de degustações ao longo e no final do caminho. O charme - e o que as crianças adoram - é que para chegar na sede da vinícola no alto da montanha embarca-se em um teleférico para, no máximo, quatro pessoas.


Ao desembarcar, você recebe uma taça de Riesling e começa o tour, seguindo as indicações, e vendo todas as fases da produção dos diversos tipos de vinhos.


No meio do tour, chega-se a um belíssimo terraço com vistas espetaculares do vale, onde se recebe mais um vinho branco, dessa vez um frutado Sauvignon Blanc.


O tour se encerra em uma sala de degustação com mais belas vistas de Napa Valley, e com mais dois vinhos tintos e um de sobremesa. Provamos, então, um Chardonnay de Carneros, um Sangiovese, um Cabernet reserva de Rutherford e um Cabernet reserva de Diamond Mountain, finalizando com um de sobremesa feito com Malvasia Bianca.


Uma dica legal é imprimir o cupom no site da vinícola e ganhar US$ 5.00 de desconto em cada ingresso (crianças não pagam).


Um passeio imperdível, com vinhos excelentes.


Em seguida, visitamos Calistoga e fomos até o famoso Chateau Montelena. O Chateau Montelena Chardonnay 1973 foi, na prova de brancos, o primeiro colocado no Julgamento de Paris em 1976. Há uma garrafa exposta na sala de degustações ao lado do DVD do filme Bottle Shock.


O local é lindo, e tem um belo lago com cisnes. Os vinhos são todos excepcionais, desde os brancos (Riesling e Chardonnay) até os tintos (um Zinfandel e dois Cabernets Sauvignons), e a depender do atendente, ainda se pode visitar o interior do chateau (sem o acento mesmo).


Rumamos, então, para a vinícola Castello di Amorosa, perto de Calistoga. Trata-se de uma construção inspirada nos castelos da Toscana e da Úmbria com mais de cem quartos, capela e tudo. Produz uma enorme quantidade de vinhos, das mais diversas cepas, inclusive italianas como Barbera e Sangiovese. A visita vale mais pela arquitetura do que pelos vinhos propriamente.


Finalizamos o dia jantando no restaurante Tra Vigne, um dos clássicos de Napa, e com uma extensa carta de vinhos, inclusive com muitas opções em taça e em meia garrafa, opção plenamente justificável quando seus clientes passaram o dia degustando. Provamos, no Tra Vigne, um dos melhores vinhos da viagem, o Paradigm Cabernet Sauvignon 2006 acompanhado de um dos melhores cordeiros que comi na vida. Infelizmente, não conseguimos visitar essa vinícola, pois precisávamos reservar com antecedência e não havia mais disponibilidade para o dia seguinte, nosso último dia em Napa. Mesmo assim, trouxe duas garrafas compradas em Los Angeles.

3º dia

No último dia em Napa, começamos pela famosa e histórica Robert Mondavi Winery, em Oakville. Optamos por fazer um tour no qual, após explicação sobre a região de Napa e a história da família Mondavi, visitamos os vinhedos e as modernas instalações da vinícola. E no final, uma degustação de alguns vinhos com snacks diversos para harmonizar com cada um deles.


Degustamos os seguintes vinhos: Robert Mondavi 2009 Unoaked Chardonnay, Robert Mondavi 2007 Napa Valley Merlot, Robert Mondavi 2008 Stag's Leap District Cabernet Sauvignon, e um vinho de sobremesa de Moscatel que não é comercializado, todos excelentes.


Rumamos, em seguida, para a V. Sattui Winery, do mesmo proprietário do Castello di Amorosa, na qual, apesar da imensa quantidade de rótulos produzidos, os vinhos são superiores.


A vinícola é perfeita para um piquenique, pois possui uma enorme delicatessen, com diversas opções de queijos (são centenas de tipos), embutidos, sanduíches, saladas e massas. E come-se em mesas ao ar livre em um cenário de vila toscana.


Após degustar alguns dos vinhos da V. Sattui (V. Sattui Napa Valley Chardonnay 2009, V. Sattui Dry Creek Valley Zinfandel 2009, V. Sattui Napa Valley Merlot 2007, V. Sattui Napa Valley Cabernet Sauvignon 2007 e Sattui Family Cabernet Sauvignon St. Helena 2007), fizemos um piquenique no local.


De lá tivemos que optar entre visitar Los Carneros, ao sudoeste da cidade de Napa e o famoso Stags Leap District. Optamos por esse último.


A primeira vinícola visitada foi a Clos du Val, localizada ao longo da Silverado Trail. A vinícola conta com um belo jardim de rosas, e uma pequena área de piquenique cercada de oliveiras.


Dentre as degustações oferecidas, optamos pela Reserve Reds Tastings com alguns library wines (como são chamados os vinhos mais antigos, diversos da safra corrente posta à venda no mercado).


Os vinhos degustados foram os seguintes: Clos du Val Reserve Pinot Noir 2007 (Carneros), Clos du Val Winemaker's Signature Series - Three Graces Blend 2007 (apenas 300 caixas produzidas, um corte bordalês com a seguinte composição 90% Cabernet Sauvignon, 5% Merlot, 4% Cabernet Franc e 1% Petit Verdot), Clos du Val Stags Leap District Cabernet Sauvignon 2006 (o vinho top da vinícola), Clos du Val Reserve Cabernet Sauvignon 2001 e Clos du Val Reserve Cabernet Sauvignon 1998. Todos excepcionais! E a linha básica, a classic, tem um Cabernet Sauvignon de excelente custo-benefício, além de outros varietais e cortes.


De lá, seguimos para a histórica Stag's Leap Wine Cellars, também na Silverado Trail. O Stags Leap Wine Cellars 1973 SLV Cabernet Sauvignon foi o grande vencedor no painel dos vinhos tintos do famoso Julgamento de Paris em 1976. Na bela sala de degustação estão expostos volumes do livro sobre a histórica degustação de autoria de George M. Tauber e uma garrafa do vinho vencedor.


A Stag's Leap Wine Cellars - que não deve ser confundida com a Stags' Leap Winery (outra vinícola) ou com a própria denominação Stags Leap District (reparem que o apóstrofo é diferente em cada um dos nomes) - produz, a partir de seus vinhedos em Stags Leap District, três vinhos Cabernet Sauvignon (respectivamente, Fay, S.L.V. e Cask 23) e um Chardonnay (Karia), bem como outros vinhos a partir de vinhedos, próprios ou não, localizados em outras partes de Napa.


Optamos pela Estate Collection Tasting Flight. Iniciamos com um delicioso 2008 Arcadia Vineyard Chardonnay. Em seguida, passamos para os tintos: 2007 Fay Cabernet Sauvignon, 2007 S.L.V. Cabernet Sauvignon e o flagship wine da vinícola Cask 23 Cabernet Sauvignon. Todos fantásticos, da mesma sub-AVA (Stags Leap District), porém de vinhedos diversos, com características distintas. Na verdade, Fay e S.L.V. são vinhedos contíguos que, na melhor expressão do terroir local, produzem vinhos com características diversas. O famoso e caro Cask 23 era originalmente um vinho elaborado a partir de uma parcela do vinhedo S.L.V. e atualmente é elaborado apenas em anos excepcionais, com as melhores parcelas dos vinhedos Fay e S.L.V.


No final, a atendente ainda nos ofereceu, como cortesia, o Stags Leap Wine Cellar 2006 Merlot, também muito bom, e o Stags Leap Wine Cellar 2007 Artemis Cabernet Sauvignon, de incrível relação custo-benefício.


Encerramos o dia no Mustard Grill, em Yountville, um clássico restaurante local que serve comfort food da melhor qualidade. O nada modesto lema deles "Sorry... everything has been delicious since 1983" realmente procede e então entendemos a dificuldade que tivemos em conseguir reservar uma mesa!


Cheers!


Mais postos da série Descobrindo a Califónria você encontra aqui.

Comentários (Respostas)